E hoje ficámos a saber que a Holanda se recusa a emitir “eurobonds” e exige que os países que recorram ao fundo de resgate europeu dêem garantias de austeridade fiscal.
Sim, no meio da
doença e da morte eles insistem na austeridade!
Tanto em 2011 como
agora, ao chegar a hora da verdade, a apregoada “solidariedade europeia” resume-se
ao velhinho conceito de “cada um por si”, contrário a tudo o que a União
Europeia diz ser.
A mensagem
europeia é simples: “primeiro amarramos-te (pertença ao euro, limites de défice
e de dívida pública) e agora, depois de amarrado, desenrasca-te sozinho com o
coronavírus” – isto é, não só, não ajudam, como ainda se tornam em obstáculo à
ação dos estados, como se verá.
Já sabemos que a
União Europeia se está a borrifar para os mortos nos países do sul, tal como
outrora se esteve a borrifar para os desempregados desses mesmos países,
aquando da chamada “crise da dívida” – e não mudaram nada.
Solidariedade em troca de austeridade deixa de o ser; antes é o regresso da troika de má memória, de cujas políticas ainda não nos livrámos, mas nas quais a União Europeia ateima, mesmo depois das terríveis conseqüências que obteve no passado e das circunstâncias únicas dos dias de hoje.
Para a União
Europeia não importam as pessoas, principalmente as que tiverem a pele mais
morena; o que realmente conta é o défice orçamental e a dívida pública dos
membros da zona euro, utilizando instrumentos de chantagem e de terrorismo
económico para fazer cumprir esse objetivo, tal como na Grécia de 2015.
Tudo o resto que
se lixe, que se dane, que fique no desemprego, que adoeça ou que morra; desde
que as contas públicas estejam na ordem o sofrimento humano é-lhes indiferente.
No fundo, os
atuais líderes europeus continuar a subscrever de forma não assumida, por
saberem que lhes fica mal, insinuações de um passado recente, no sentido de se
chamarem de “porcos” aos países do sul (PIIGS – Portugal, Italy, Ireland,
Greece and Spain), ou de insinuar que os mesmos “gastam tudo em vinho e em mulheres”.
Países do sul a
quem quiseram abrir um processo por défice excessivo (2016); mas estando a
França nas mesmas condições, nada foi feito “parce que c’est la France”, nas
palavras do então Presidente da Comissão Europeia, numa flagrante dualidade de critérios
que feriu de morte a réstia de pretensa igualdade entre os estados, se porventura
ainda existisse.
Depois de todas
estas atitudes tidas ao longo dos anos, ainda existem dúvidas relativamente ao
racismo, não assumido mas mal escondido, dos países do norte em relação aos
povos mediterrânicos?
Não esquecer que a
construção europeia se baseou em dois pilares: a livre circulação de pessoas e
bens, e a união económica e monetária.
Depois do
coronavírus ficámos conversados em relação à livre circulação de pessoas, morta
e enterrada. Quanto à união económica e monetária, a mesma está adaptada à
realidade económica alemã (exportadora), só tendo beneficiado as multinacionais
dos países do norte da Europa à custa da asfixia do crescimento económico no
continente, nomeadamente nas economias do sul.
Devido à paragem da maioria das atividades, é inevitável a vinda de uma crise económica muito mais severa que a de 2008.
Para sua resolução,
ou se emite moeda, provocando inflação, ou se mutualiza a dívida, a fim da
União Europeia enfrentar essa mesma crise económica como um só bloco, como uma
só entidade.
Devido à
existência do Euro é impossível a cada país, por si só, emitir moeda, ficando a
restar o endividamento como o único instrumento disponível para fazer face à
crise.
Se a União
Europeia se recusar a enfrentar esta situação como um todo, se insistir na
receita da austeridade e se não der sinais de uma verdadeira união económica e
política, demonstrará a sua inutilidade histórica e perderá a sua razão de
existir; é que além de não ajudar, ainda se consegue tornar numa dificuldade acrescida
para que cada país resolva, por si, a situação grave em que se encontra.
Os partidos
fascistas de Salvini, de Le Pen, de Abascal ou de Ventura agradecem o
extremismo neoliberal que grassa na Europa, pois fará com que o poder lhes caia
nas mãos, mais cedo que tarde, o que será pior a emenda que o soneto.
Ou a lógica
neoliberal é erradicada de vez ou a Europa reviverá o pesadelo e os dilemas dos
anos que precederam a II Guerra Mundial: ou sofrerá com um Reich alemão que
durará mil anos, ou terá pequenos tiranos fascistas instalados em cada um dos
estados europeus, conseqüência de cada país ter tentado debelar a crise pelos
seus próprios meios, com um custo muito mais dramático para as suas populações.
A alternativa será
forçosamente a Europa dos povos, humana, solidária, que centre nas pessoas – e
não nos mercados – a sua razão de existir.
Ou essa Europa
surge, ou o coronavírus pregará o último prego do caixão, tanto do da União
Europeia, como do da liberdade e da democracia no continente, valores dos quais
essa própria UE acaba por não comungar, devido à sua loucura pela austeridade
orçamental, que num passado recente minou as fundações de uns regimes
democráticos que não sobreviverão a outra onda de cortes igual à de 2010-13.